quarta-feira, 2 de abril de 2008

O HOMEM NU - *FERNANDO SABINO*

Fernando Tavares Sabino nasceu em Belo Horizonte, em 12 de outubro de 1923 e morreu no Rio de Janeiro, em 11 de outubro de 2004. Foi um dos maiores escritores e jornalistas brasileiro.

Durante a adolescência, trabalhou como locutor de rádio e começou a colaborar regularmente com artigos, crônicas e contos em revistas da cidade, conquistando prêmios em concursos.

No início da década de 1940, começou a cursar a faculdade de direito e ingressou no jornalismo também como redator da “Folha de Minas”.

Seu primeiro livro de contos, “Os Grilos não Cantam Mais”, foi publicado em 1941, no Rio de Janeiro. Depois disso, tornou-se colaborador regular do jornal “Correio da Manhã”, onde conheceu Vinicius de Moraes, de quem se tornou amigo.

Mudou-se para o Rio de Janeiro em 1944. Depois de se formar em direito na Faculdade Federal do Rio de Janeiro em 1946.

“O Encontro Marcado”, uma de suas obras mais conhecidas, foi lançada em 1956, ganhando edições até no exterior, além de ser adaptada para o teatro. Sabino decidiu, então, viver exclusivamente como escritor e jornalista a partir de 1957. Iniciou uma produção diária de crônicas para o “Jornal do Brasil”, escrevendo mensalmente também para a revista “Senhor”.

Em 1960, Fernando Sabino publicou o livro “O Homem Nu”, pela Editora do Autor, fundada por ele, Rubem Braga e Walter Acosta.

Publicou o romance “O Grande Mentecapto”, em 1979, iniciado mais de trinta anos antes.

A obra, que lhe rendeu o Prêmio Jabuti, e acabaria sendo adaptada para o cinema, com direção de Oswaldo Caldeira, em 1989, e também para o teatro. Em julho de 1999, recebeu da Academia Brasileira de Letras o prêmio Machado de Assis pelo conjunto de sua obra.

Faleceu em sua casa em Ipanema, vítima de câncer no fígado, às vésperas de seu 81º aniversário. O Vale a pena ler de novo publica hoje “O Homem Nu”, originalmente apresentado em coletânea homônima.



* O Homem Nu *

Ao acordar, disse para a mulher: “Escuta, minha filha: hoje é dia de pagar a prestação da televisão, vem aí o sujeito com a conta, na certa. Mas acontece que ontem eu não trouxe dinheiro da cidade, estou a nenhum.”
“Explique isso ao homem”, ponderou a mulher.
“Não gosto dessas coisas. Dá um ar de vigarice, gosto de cumprir rigorosamente as minhas obrigações. Escuta: quando ele vier a gente fica quieto aqui dentro, não faz barulho, para ele pensar que não tem ninguém. Deixa ele bater até cansar, amanhã eu pago.”
Pouco depois, tendo despido o pijama, dirigiu-se ao banheiro para tomar um banho, mas a mulher já se trancara lá dentro. Enquanto esperava, resolveu fazer um café. Pôs a água a ferver e abriu a porta de serviço para apanhar o pão.
Como estivesse completamente nu, olhou com cautela para um lado e para outro antes de arriscar-se a dar dois passos até o embrulhinho deixado pelo padeiro sobre o mármore do parapeito. Ainda era muito cedo, não poderia aparecer ninguém.
Mal seus dedos, porém, tocavam o pão, a porta atrás de si fechou-se com estrondo, impulsionada pelo vento.
Aterrorizado, precipitou-se até a campainha e, depois de tocá-la, ficou à espera, olhando ansiosamente ao redor. Ouviu lá dentro o ruído da água do chuveiro interromper-se de súbito, mas ninguém veio abrir.
Na certa a mulher pensava que já era o sujeito da televisão. Bateu com o nó dos dedos: “Maria! Abre aí, Maria. Sou eu”, chamou, em voz baixa.
Quanto mais batia, mais silêncio fazia lá dentro.
Enquanto isso, ouvia lá embaixo a porta do elevador fechar-se, viu o ponteiro subir lentamente os andares... Desta vez, era o homem da televisão!
Não era. Refugiado no lance da escada entre os andares, esperou que o elevador passasse, e voltou para a porta de seu apartamento, sempre a segurar nas mãos nervosas o embrulho de pão: “Maria, por favor! Sou eu!”
Desta vez não teve tempo de insistir: ouviu passos na escada, lentos, regulares, vindos lá de baixo...
Tomado de pânico, olhou ao redor, fazendo uma pirueta, e assim despido, embrulho na mão, parecia executar um balé grotesco e mal ensaiado.
Os passos na escada se aproximavam, e ele sem onde se esconder. Correu para o elevador, apertou o botão. Foi o tempo de abrir a porta e entrar, e a empregada passava, vagarosa, encetando a subida de mais um lance de escada.
Ele respirou aliviado, enxugando o suor da testa com o embrulho do pão.
Mas eis que a porta interna do elevador se fecha e ele começa a descer.
“Ah, isso é que não!”, fez o homem nu, sobressaltado.
E agora? Alguém lá embaixo abriria a porta do elevador e daria com ele ali, em pêlo, podia mesmo ser algum vizinho conhecido...
Percebeu, desorientado, que estava sendo levado cada vez para mais longe de seu apartamento, começava a viver um verdadeiro pesadelo de Kafka, instaurava-se naquele momento o mais autêntico e desvairado regime do terror!
“Isso é que não”, repetiu, furioso.
Agarrou-se à porta do elevador e abriu-a com força entre os andares, obrigando-o a parar.
Respirou fundo, fechando os olhos, para ter a momentânea ilusão de que sonhava. Depois experimentou apertar o botão do seu andar. Lá embaixo continuavam a chamar o elevador.
Antes de mais nada: Emergência: parar. Muito bem. E agora? Iria subir ou descer? Com cautela desligou a parada de emergência, largou a porta, enquanto insistia em fazer o elevador subir.
O elevador subiu. “Maria! Abre esta porta!”, gritava, desta vez esmurrando a porta, já sem nenhuma cautela.
Ouviu que outra porta se abria atrás de si. Voltou-se, acuado, apoiando o traseiro no batente e tentando inutilmente cobrir-se com o embrulho de pão. Era a velha do apartamento vizinho: “Bom dia, minha senhora”, disse ele, confuso. “Imagine que eu...”
A velha, estarrecida, atirou os braços para cima, soltou um grito: “Valha-me Deus! O padeiro está nu!”
E correu ao telefone para chamar a radiopatrulha: “Tem um homem pelado aqui na porta!”
Outros vizinhos, ouvindo a gritaria, vieram ver o que se passava: “É um tarado!” “Olha, que horror!” “Não olha não! Já pra dentro, minha filha!”
Maria, a esposa do infeliz, abriu finalmente a porta para ver o que era.
Ele entrou como um foguete e vestiu-se precipitadamente, sem nem se lembrar do banho. Poucos minutos depois, restabelecida a calma lá fora, bateram na porta.
“Deve ser a polícia”, disse ele, ainda ofegante, indo abrir.
Não era: era o cobrador da televisão.

Fonte: Jornal Bom Dia

A seção *Vale a pena ler de novo* do Jornal Bom Dia republica aos sábados textos de qualidade, de interesse ou históricos que foram veiculados pela imprensa. É uma seção dedicada à rica memória do jornalismo.